46 anos de negociações por Macau
Gravura de Macau entre 1616-1670 de Johannes Vingboons |
Foi após a chegada dos Portugueses à India que ouvimos falar pela primeira vez
dos “Chins”- a gente branca, sem barba, de cabelos compridos- cujas embarcações
bem armadas surgiam de vez em quando nas regiões do Sudoeste asiático. Nem nós
nem os nossos informadores fazíamos ideia de quem eles eram nem de onde vinham.
Apenas sabíamos que essa gente era geralmente designada por “Chin”.
Esta é a origem do nome da «China», que os Portugueses deram ao país dessa
remota e estranha gente, quando ali chegaram- nome que, adoptado depois por
outros povos e até pelos próprios Chineses passou a designar oficialmente a sua
pátria na terminologia ocidental.
Comunicada esta valiosa informação a Manuel I, o seu interesse foi tal que sem
mais detenças, despacha em 1508 (isto é 10 anos depois da nossa chegada à
India) uma frota comandada por Diogo Lopes de Sequeira, para fazer
descobrimentos na região situada entre a ilha de Lourenço (Madagáscar) e
Malaca, encarregando-o expressamente da aventurosa missão da colheita de
informações concretas sobre os Chineses, seu país, comércio religião etc.
Perguntareis pelos Chins, e de que parte vêm e de quão longe.
Afonso de Albuquerque foi, porém, o primeiro português a estabelecer relações
de amizade com os Chineses. Chegado a Malaca com uma frota em 1511, o hábil
capitão trata com deferência os cinco juncos chineses ali detidos e aceita o
seu oferecimento de nos auxiliar nas operações de desembarque.
Conquistada a cidade, Albuquerque manda dar-lhes todos os mantimentos
necessários para a viagem de regresso à China e faz-lhes mercê de alguns
presentes adrede trazidos de Portugal.
Chegados à pátria, os Chineses transmitem às autoridades as primeiras notícias
sobre os Portugueses-altamente lisonjeiras do nosso caracter e valentia.
Dois anos depois, em 1513, Rui de Brito Patalim, primeiro capitão português de
Malaca, despacha em missão exploratória um junco à China, levando como feitor
Jorge Alvares, um dos capitães da frota de Albuquerque.
Aportado a Tamão (outrora conhecida por ilha da Veniaga e presentemente por
Lin-Tin), na foz do rio Cantão, local destinado pelas autoridades chinesas para
a navegação do estrangeiro, Jorge Alvares ali permanece uns meses em observação
e estudo.
Assim data de 1513 a nossa chegada `China, cabendo a Jorge Alvares a honra de
ser o primeiro português a pisar o solo do Celeste Império, que ela assinala
gloriosamente com um padrão e tragicamente com a sepultura do seu filho, junto
de quem ele próprio viria a ser enterrado em 1521, quando ali faleceu durante a
sua quarta viagem à China.
Foi certamente baseado nas informações de Jorge Alvares que o boticário e
naturalista Tomé Pires apresenta, na sua «Suma Oriental», a primeira relação
minuciosa da China e dos Chineses, sendo ao mesmo tempo o primeiro a
identificar o país com o lendário Cataio, e a sua capital, Pequim, como
Cambuluc, -tornadas celebres na Europa pelas descrições de Marco Polo.
Em 1515, um grupo de mercadores portugueses, chefiados por Rafael Perestrelo,
italiano ao serviço de Portugal, foi encarregado pelo governador de Malaca,
Jorge de Albuquerque, irmão de Afonso, de empreender nova incursão de caracter
predominantemente comercial, à China- missão que foi coroada com o melhor
êxito.
Na mesma data (1515) sai de Lisboa a primeira frota destinada a abrir oficialmente
as relações diplomáticas e comerciais com os Chineses. Comandava-a Fernão Peres
de Andrade, já com o título de Capitão -Mor da Viagem da China, e conduz uma
embaixada com carta e presentes de D. Manuel para o «Rei da China».
Após demoras na India e em Malaca, a frota chega a Tamão em 15 de Agosto de
1517 e segue para Cantão, onde desembarca o referido Tomé Pires, feito agora
embaixador, com luzido séquito.
A parte comercial e marítima desta missão é desempenhada por Fernão Peres com
muita facilidade, pois além de proveitosas transacções de mercadorias consegue
despachar um o seu capitão para fazer reconhecimentos na costa chinesa até
Chincheo, em demanda de novas ilhas de Liu-Kiu (a a ctual Formosa).A parte
diplomática, porém malogra-se por completo. A embaixada de Tomé Pires, só em
Janeiro de 1520 é autorizada a seguir para Pequim, onde é recebida com simpatia
pelo imperador Wu-Tsung, mas a prematura morte deste e os conflitos e
mal-entendidos que entretanto surgem com as autoridades da Corte deitam tudo a
perder.
Numa irrupção de xenofobia, a corte imperial ordena a retirada de todos os
estrangeiros do seu solo, suspende o comercio com o exterior e fecha o porto de
Cantão à navegação estrangeira. A situação agrava-se ainda mais com a chegada a
Tamão de nova frota portuguesa, comandada por Martim Afonso de Melo e Coutinho,
que embora encarregada de fazer um tratado de paz, amizade e comércio com o
imperador da China, é recebida hostilmente, sendo obrigado a retirar-se com
pesadas perdas. Esta rotura nas relações oficiais sino-portuguesas dura até
1554.Contudo nunca os portugueses deixaram de frequentar regularmente a China
durante todo este período. Pelo contrário, deu-se um activo recrudescimento do
trafego ilegal ou contrabandista dos Portugueses através de certas ilhas e
portos do litoral, mais a Norte., nas províncias de Fukien e Chekkang com
activa colaboração de mercadores chineses e cumplicidade das respectivas
autoridades locais, a ponto de termos conseguido estabelecer algumas feitorias
como Chanchieo e Liamo ou Ningo.
Em 1542, os Portugueses descobrem os Japão. Este facto, ao mesmo tempo que nos
vem abrir um novo e importante mercado, agrava extraordinariamente o problema
das nossas extensas e desprotegidas comunicações marítimas.
Tendo-se apercebido imediatamente de que entre a China e o Japão não havia
qualquer trafego marítimo ou comercial (não só porque os Chineses estavam
proibidos, sob pena de morte de sair do país, como também porque os dois países
orientais estavam separados por graves conflitos e actos de pirataria
reciproca) os Portugueses depressa se encarregam do lucrativo comercio
sino-nipónico, na dupla qualidade de mercadores e transportadores.
As nossas toleradas ou clandestinas feitorias de Chancheo e Liampo adquirem por
isso invulgar animação e importância, de tal forma que a Corte de Pequim se vê
forçada a intervir, expulsando-nos dali em 1548.
Compelidos a abandonar as vantajosas posições no Norte, dirigimos novamente a
atenção para Sul, para a região de Cantão (de onde fôramos expulsos em 1522),
sabendo-se que a partir de 1524 (datando descobrimento do Japão) as nossas
principais naus principiam a frequentar a ilha de Lampacao, no estuário do Rio
das Pérolas, que servia de entreposto ao comércio de contrabandistas de Cantão.
Reconhecendo por experiencia própria, que o comércio com os Portugueses, longe
de prejudicar, só trazia vantagens para a sua vida económica e financeira, pois
que para além das receitas para o erário publico, provindas dos direitos,
regularizava o mercado interno com o fornecimento de artigos estrangeiros
essenciais e com o escoamento das mercadorias nacionais sobrantes -as
autoridades provinciais do Sul recebem-nos agora com mais compreensão e
simpatia, se bem que cautelosamente a principio para não ofender Pequim.
Cerca de 1550, são abertamente reatadas as relações comerciais
sino-portuguesas: os mandarins de Cantão autorizam-nos a estabelecer uma
feitoria periódica e provisória para a realização de um mercado ou feira anual
na ilha de Sanchuang (onde em 1552 morreu Francisco Xavier) no delta do Rio das Pérolas. Pouco depois, esta feitoria foi transferida para a ilha de Lampacao, a
meio entre aquela e a futura Macau.
O ano de 1554 é de capital importância na história das relações luso-chinesas:
após três anos de pacientes e habilidosas negociações o Capitão Leonel de
Sousa, que se encontrava em Shanchuang à frente de uma frota de 17 velas, faz
com que o Hai-Tau, ou governador provincial de Cantão, um “assentamento” que,
pondo termo ao período de desconfianças e conflitos, lutas e violências,
oficializa e regula as relações de paz e amizade, comércio e navegação entre
Portugal e a China.
Remontam a este período (1550-1555) os nossos primeiros contactos com
Macau-então modestíssima aldeia de pescadores, situada numa árida e rochosa
península com o seu pequeno mas bem abrigado porto. Os Chineses chamavam-na de
Ho-Keang, isto é, Baia do Espelho em forma de Concha, certamente em homenagem a
à graciosa baía da Praia Grande ou, Ou-Mun-Porta da Baía do Espelho de água, e
mais popularmente (sobretudo entre os mercadores, marinheiros e pescadores)
A-MA-Kao, isto é, Porto da Deusa A-Ma, Rainha do Céu, padroeira dos mareante,
que lhe erigiram um templo à entrada da barra, tendo sido esta a última
designação, a perfilhada por nós.
Tudo leva a crer que foi a partir do primeiro Tratado
Luso-Chinês, em tão boa hora negociado e assinado por Leonel de Sousa, que
fomos autorizados a estabelecer uma feitoria livre e legal em Macau, passando os
Portugueses a concentrar-se ali de 1555 a 1557, com o consequente abandono a
Lampacao.
Em Macau, sentíamo-nos tão seguros «como se ela estivera situada na mais segura
parte de Portugal», segundo testemunho coevo de Fernão Mendes Pinto confirmado
pelo Frei Gaspar da Cruz que afirma que «desde o ano 54 a esta parte se fazem
as fazendas na China muito quietamente e sem nenhum perigo».
Os documentos mais antigos que comprovam a nossa presença em Macau são de 1555.
Mendes Pinto faz datar uma carta de «Macuao,20 de Novembro de 1555»,
encontrando-se no texto a variante «Amaquao». O provincial jesuíta P.Belchior
Nunes Barreto emprega a fórmula «deste Machoam porto da China, 23 de Novembro
de 1555.»
É opinião geralmente aceite por historiadores, tanto antigos como modernos,
nacionais e estrangeiros (incluindo chineses), baseada quer na tradição tão
antiga como o próprio acto, corroborada pelo testemunho de fontes históricas
coevas que a formal cessão de Macau aos Portugueses por parte das autoridades
de provinciais de Cantão, se verifica em 1557, logo confirmada pelo imperador Chi-Tsung
e ractificada pelo sucessor Mo-Tsung. O motivo imediato desta cessão, segundo a
mesma tradição foi o de, acorrendo ao chamamento feito pelas ditas autoridades,
ter-mos, duma forma eficaz e completa, limpo toda a região do delta de Cantão de
terríveis bandos de piratas, nomeadamente o do famigerado Chan-Si-Lau: o nosso
estabelecimento em Macau, mesmo às portas de Cantão, espantaria para longe e
para sempre, os impunes e atrevidos malfeitores, permitindo assim uma vida mais
sossegada e mais segura, não só à sobressaltada população de toda a região de Kuangtnung
como também à pacífica e activa navegação costeira.
Contudo é-nos licito supor que esta atitude por parte das autoridades chinesas,
de ceder Macau aos Portugueses para servir ao mesmo tempo de base de
policiamento contra os piratas e porto e entreposto para a sua navegação
ocupada em comércio legítimo, foi principalmente consequência duma evolução
operada na política da própria China, que resolveu abandonar asfixiante
autarquia económica em que vivia, para entrar na senda do comércio com o
estrangeiro.
Tendo, por um lado reconhecido as evidentes vantagens, a necessidade até, do
comercio externo, realizado pelos Portugueses, principalmente depois da
abertura do trafego com o Japão, que dava à região de Cantão e à China
prosperidade nunca outrora conhecida, motivada por avultadas vendas de seda e
de outras mercadorias, generosamente pagas em ouro e prata, metais de que tinha
grande carência; mas por outro lado, estando proibidos, sob pena de morte, por
severos éditos imperiais, não só para saia da China, como ainda de comerciar
com estrangeiros, em território chinês; e ainda, por um lado verificando que os
Portugueses eram os principais, senão os únicos, intermediários capazes de
efectivar esses comercio, pelo domínio que tinham, tanto dos transportes
marítimos, como dos mercados de todo o Extremo-Oriente, nomeadamente o Japão;
mas por outro sendo estrictamente vedado aos estrangeiros entrar na China- os
mandarins da cidade procuraram um processo airoso e comodo para tornear todas
estas dificuldades, através de uma solução que, sem quebra de respeito pelas
ordens imperiais, lhes permitisse embarcar na politica do comercio externo, sem
perder a face.
A solução mais decente, pratica e eficaz de criar, fomentar e proteger o seu
próprio comércio externo, principalmente com o Japão dentro dos
condicionalismos existente, sem ter de sair do país nem de facultar os seus
portos aos estrangeiros e perigos, mas de forma a colher todas as enormes
vantagens a ele inerentes, sem arcar com nenhumas das suas responsabilidades e
trabalhos, e perigos estava na cessão aos Portugueses dum entreposto.
Com a cessão de Macau, minúsculo e ignorado recanto do seu
incomensurável território--os Chineses conseguem ao mesmo tempo num simples
gesto: suprimir a pirataria; criar e proteger ao mesmo tempo o comércio
externo, através dum local permanente e seguro, onde os seus mercadores
pudessem efectuar as suas transacções sem infringir as rigorosas leis da Corte
e armazenar os artigos recebidos das diversas regiões da China, para serem
trocados com segurança e liberdade, efectiva e permanente, e não apenas durante
a curta feira anual; e, o que é de suma importância evitar que os estrangeiros
permanecessem em território chinês, interferindo com a sua vida e os seus costumes.
E isto tudo, obedecendo rigorosamente à ordem imperial da proibição de saída do
país!
Ao ceder-nos Macau, à entrada de Cantão, um dos mais
importantes centros do seu comércio, a China transfere para ali todo o seu tráfego
com o estrangeiro e faz dos Portugueses seus transportadores e agentes
comerciais e lhes confia o monopólio das suas importações e exportações. E isto
porque Portugal detinha o exclusivo das comunicações marítimas e do comércio,
não só entre a Europa e todo o Oriente, como também das diversas regiões do
Oriente entre si.
Foi assim que, após o estabelecimento de Macau em 1557, os Portugueses se
transformaram de facto e de direito nos únicos intermediários e transportadores
de todo o lucrativo comercio e trafego da China com o Japão, Manila, Sião,
Malaca, India e Europa.
Em 1578 fomos autorizados a frequentar o mercado de Cantão.
Assistimos então a um extraordinário fenómeno: devido à estreita cooperação
luso-chinesa, Macau, quase repentinamente, transforma-se, de modestíssima e
obscura aldeia de pescadores, no mais importante e florescente entreposto em
todo o Extremo-Oriente. Em 1586, a primitiva «Povoação ou Porto do nome e Deus
de Amacao, na China» passa a chamar-se oficialmente «Cidade do Nome de Deus na
China».
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